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O primeiro livro do Antigo Testamento, ou Primeira Revelação, nos chama a atenção concernente a determinadas passagens que denotam uma simbologia, cuja interpretação requer estudos aprofundados, tanto do idioma ao qual foi escrito (hebraico), quanto da hermenêutica e exegese necessárias.
Temos que ter em mente que a leitura bíblica, em quaisquer passagens, apresenta quatro níveis de interpretação, segundo os sábios judeus:
- Peshat: o significado literal, objetivo e comum.
- Remez: o significado alegórico, oculto nas entrelinhas do texto.
- Derush: o significado moral, com objetivos éticos de ensinamento. Provém do verbo hebraico lidrosh (exigir), na qual o homem exige um significado mais aprofundado do texto do que nos níveis anteriores.
- Sod: significado místico, secreto, cabalístico. Significa segredo, de forma que quem já conhece a causa, conhece o segredo ou consequência. O termo cabalístico provém de cabala, do verbo hebraico lecabel, que significa receber.
Cada consoante inicial dos níveis acima elencados (P, R, D, S) compõem a palavra PARDÊS, de etimologia persa, que significa Pomar ou Jardim.
Dessa forma, conseguiremos atingir um nível mais profundo de interpretação conforme avançamos na ordem dos mesmos. Dizem os sábios que “quem lê e só busca o sentido literal, assemelha-se ao homem que colhe o trigo, come a palha e joga fora os grãos”.
Jesus pronunciava, em suas exortações consoladoras, no terceiro nível, com características parabólicas, que encerravam um profundo significado moral, que muitos não conseguiam compreender de imediato.
Vamos, neste artigo, nos restringir a três passagens do Antigo Testamento [capítulo 1, versículo 1 (No princípio da criação…), capítulo 1, versículo 26 (Adão à imagem e semelhança) e capítulo 2, versículo 7 (Formação do homem…)].
Em praticamente todas as traduções em língua portuguesa que conhecemos, o primeiro versículo do Gênesis é assim descrito: “No princípio, Deus criou os céus e a terra”. A pergunta que paira em nossas mentes é: No princípio, quando?
André Chouraqui (1917 – 2007), tradutor dos 73 livros que compõem a Bíblia para o francês, tece o seguinte comentário a respeito do vocábulo No Princípio:
“No Princípio (do hebraico beréshit): a primeira palavra da Bíblia é uma palavra deliberada, especialmente criada, cuja riqueza de significados não foi ainda esgotada, mesmo depois de milênios de exegese. É composta pela preposição be, vocalizada sem o artigo, e pelo substantivo réshit, ‘começo, princípio, parte inicial’, que é, por sua vez, formado por rosh, ‘cabeça’, e por -it, que marca a abstração. A ausência do artigo indica um estado construído, comum a todas a vezes em que surge a expressão beréshit (em Jeremias, Deuteronômio e Provérbios). O termo está, portanto, fortemente ligado ao termo seguinte, mesmo se este for um verbo, como é o caso aqui. Assim o entenderam gramáticos antigos como Rashi, que propôs a equivalência com beréshit bero (no infinitivo), “no princípio do ato de criação”, o versículo 2 seria, desse modo, um inciso circunstancial, enquanto o versículo 3, Elohîms diz, seria a proposição principal.
A tradução habitual, In Principio, ‘No começo’, ‘Au commencent’, ‘In the beginning’ etc., constitui uma extrapolação mistificadora – introdução de uma cosmogonia – que esvazia o texto de suas significações originais. Daí o neologismo Entête (encabeçar), mais fiel que o En arché da Septuaginta (Bíblia Grega). Assinale-se que o In Principio de Jerônimo (tradutor das Bíblias hebraica e grega para o latim, conhecida como Vulgata Latina) tentava aproximar-se do sentido concreto do hebraico, ao qual retornamos aqui.”
Observe, então, que em apenas uma expressão (No princípio) temos uma grande abrangência de significados. No idioma original, o primeiro versículo transliterado cita: “Beréshit bará Elohim et hashamaim veets haarets”, que, como dito anteriormente, costuma ser traduzido como: “No princípio, Deus criou os céus e a terra”. Entretanto, analisemos a palavra hebraica “bará”, classificada como o único verbo que tem um único e só sujeito: Deus. Nas traduções geralmente é associado com a palavra “criou”, mas, conforme algumas regras linguísticas do idioma hebraico, se o verbo “bará” for pronunciado com a segunda vogal “O”, ficando sua pronúncia “Berou”, a tradução muda para “ao criar” ou “quando criava”. Este segundo significado tem mais lógica no sentido de um princípio indeterminado, daquilo que se iniciava ou começava, ou seja, a criação inicia-se em determinado instante desconhecido e continua até hoje, incessantemente, pois Deus jamais cessou de criar ou trabalhar.
Jesus disse: Meu Pai e eu trabalhamos até agora. Não há a menor lógica em imaginar Deus na mais ínfima inatividade, pois o dinamismo e manutenção de tudo que Ele criou, e continua criando, nos mostra a Sua permanente atividade.
Outro ponto que gostaríamos de destacar é a expressão “os céus e a terra”. A palavra hebraica shamaim (traduzida por céus) é uma junção de sham, que significa lá, acrescentada de maim, que significa águas. Portanto, lá águas, que contém águas, cheio de águas. O vocábulo céus não existia naquele momento e irá surgir no versículo 8 de Gênesis, quando Deus denomina o firmamento de Céus. Maimônides afirma que o primeiro versículo pode ser traduzido assim: “No princípio, criou Elohim os superiores (Céus) e os inferiores (Terra). Uma tradução feita dessa maneira: “No princípio, quando Deus criava as águas e a terra”, tem mais lógica, pois no versículo seguinte surge: “e o espírito de Deus pairava sobre as faces das águas”. Onde teria surgido as águas citadas no segundo versículo? Das águas erroneamente citadas como “céus” do primeiro versículo.
Veja, então, a lógica e o encadeamento das passagens bíblicas quando analisamos e interpretamos no idioma original, pois as aparentes incongruências tendem a desaparecer. Bíblia não se lê, se estuda!
Na segunda passagem a ser analisada, tema deste artigo, se refere a Adão. Utilizarei a tradução de André Chouraqui, pois é mais próxima do hebraico: Gênesis 1:26. Elohîms diz: “Nós faremos Adâm – o Terroso – à nossa réplica, segundo nossa semelhança.”
Comentários de Chouraqui: Nós faremos: emprego raríssimo de um verbo no plural da fala de Elohîms. Aqui trata-se das relações do Único com a totalidade dos humanos. A exegese hebraica, para fugir do risco de uma leitura politeísta da Bíblia, declara que antes de dar à criação o seu chefe, o homem, Elohîms quis consultar todos aqueles a quem já havia criado, inclusive os anjos. Daí o emprego do plural, imediatamente corrigido nos versículos seguintes pelo retorno ao singular. Esta implosão do plural é eficaz para sublinhar a importância única do homem nas hierarquias do universo: a totalidade do real preside à sua criação.
Adâm: termo genérico que engloba toda a humanidade, “o humano”, que pode ainda ser traduzido por “o terroso”. Notemos, então, que Adâm, de onde vem o termo Adão, não representa uma pessoa, mas a humanidade como um todo, da mesma forma que Eva, do hebraico Chava, significa “aquela que dá a vida”, representante do sexo feminino, e não nome próprio.
Recordemos em O Livro dos Espíritos, quando Allan Kardec faz os seguintes questionamentos:
Questão 50. A espécie humana começou por um só homem?
— Não; aquele que chamais Adão não foi o primeiro nem o único a povoar a Terra.
Questão 51. Podemos saber em que época viveu Adão?
— Mais ou menos naquela que lhe assinalais: cerca de quatro mil anos antes do Cristo.
Comentário de Kardec: O homem cuja tradição se conservou sob o nome de Adão foi um dos que sobreviveram, em alguma região, a um dos grandes cataclismos que em diversas épocas modificaram a superfície do globo, e tornou-se o tronco de uma das raças que hoje o povoam As leis da Natureza contradizem a opinião de que os progressos da Humanidade, constatados muito tempo antes do Cristo, se tivessem realizado em alguns séculos como o teria de ser, se o homem não tivesse aparecido senão depois da época abalada para a existência de Adão. Alguns, e com muita razão, consideram Adão como um mito ou uma alegoria, personificando as primeiras idades do mundo.
Gênesis 2:7. Elohîms forma o terroso – Adâm – pó do terreno – Adama. Ele insufla em suas narinas um hálito de vida: e é o terroso, um ser vivente.
Chouraqui acrescenta que “o texto aproxima Adâm do termo adama, “gleba, terreno”. Pode-se pensar no adjetivo adôm, “vermelho”. No Oriente, as argilas mais férteis e mais plásticas são as vermelhas. Homens e húmus ou terreno e terroso mantém a mesma relação linguística que Adâm e adama.
De modo geral, todas as traduções no que se refere ao hálito ou sopro de vida, no versículo 7 acima, mantém a referida expressão no singular, considerando a ideia de uma única existência física, conceito relativamente predominante no Ocidente. No entanto, a palavra hebraica Chaim (vida) não existe no singular, podendo, então, ser compreendido o trecho do versículo como “sopro de vidas”, conceito que encontramos em obras judaicas que tratam da Cabala, oferecendo-nos a ideia das múltiplas existências.
Então, considerando as análises acima, compreendemos que, se as passagens fossem interpretadas literalmente (no primeiro nível), perderíamos muito do significado, que só pode ser compreendido melhor quanto mais nos aprofundarmos nos estudos linguísticos, bem como dos conhecimentos que a humanidade possuía na época em que foram escritas.